A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13709/2018) é um marco importante para o ordenamento jurídico brasileiro, pois traz mais um conteúdo integrativo ao sistema de proteção de direitos fundamentais, emanados a partir da Constituição Federal, especialmente no art. 5º e seus incisos.
Sistema significa que vários elementos se aglutinam de forma organizada e lógica. No caso de sistema jurídico, é dizer que normas e dispositivos legais são agrupadas e se comunicam de uma forma lógica com o objetivo de regulamentar e instituir uma ordem jurídica. É o caso do mencionado dispositivo legal, prevendo vários comandos normativos que compõe um lógica e comunicação entre si a fim de instituir a aplicação e proteção de direitos e garantias fundamentais.
Dentre o rol do art. 5º da Constituição Federal, temos que destacar o inciso X em “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, ou seja, o Estado brasileiro garante a privacidade do Cidadão. Além da privacidade, outro direito fundamental de suma importância a ser mencionado é o disposto no inciso LIV, propugnando que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Segundo Cassio Scarpinella Bueno, o princípio do Devido Processo “volta-se, basicamente, a indicar as condições mínimas em que o desenvolvimento do processo, isto é, o método de atuação do Estado-juiz para lidar com a afirmação de uma situação de ameaça ou lesão a direito”[1], ou seja, o devido processo é afirmar que se trata de um procedimento dado pela lei que todos os operadores do direito devem seguir, composto de normas que protegem e garantem a efetiva atuação e participação do cidadão quando a atuação do Poder Público atinge seus direitos e fundamentos como cidadão como liberdade, propriedade e dignidade.
O mesmo doutrinador, de forma pertinente, ensina que o devido processo não é somente atrelada a lei, mas sim a Constituição, denominando assim como “devido processo constitucional”, explicando ser “expressão que enfatiza que a pauta de reflexão sobre o direito, em um modelo de Estado como o brasileiro, deve ser a partir da Constituição, e não da lei”[2]. Portanto, o ponto crucial do devido processo é analisar se o método/processo aplicado de qualquer ação que interfira no direito relevante do cidadão obedece a premissas, fundamentos, princípios e regras constitucionais.
Nesse diapasão, a recepção da LGPD é questionada se ela dispõe de procedimentos e modo adequados que os dados de um cidadão sejam devidamente tratados e protegidos, obedecendo todas as prerrogativas e proteção garantidos na seara constitucional, ou seja, como menciona Bruno Bioni e Pedro Martins, é necessária “a releitura da cláusula do devido processo em meio a um cenário crescente de automatização de processos de tomadas de decisão que afetam as liberdades dos indivíduos, que já tem sido chamado devido processo informacional”[3].
A discussão sobre o assunto fica evidente com os recentes julgados do STF, trazendo argumentos e hermenêutica relevante para o estudo do direito/garantia fundamental para o cidadão no que abrange a proteção de dados. Um dos mais emblemáticos e propício ao assunto foi o ocorrido nos dias 6 e 7 de maio de 2020, que analisou a Medida Provisória (MP) 954/2020, que prevê o compartilhamento de dados de usuários de telecomunicações com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a produção de estatística oficial durante a pandemia do novo coronavírus. O plenário, por maioria, referendou medida cautelar em ações diretas de inconstitucionalidade para suspender a eficácia da Medida Provisória.
O STF dispôs, conforme Informativo 976, que “ao não definir apropriadamente como e para que serão utilizados os dados coletados, a MP 954/2020 não oferece condições para avaliação da sua adequação e necessidade, assim entendidas como a compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas e sua limitação ao mínimo necessário para alcançar suas finalidades. Desatende, assim, a garantia do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), em sua dimensão substantiva”[4].
Nesse sentido, o tema voltou a ser enfrentado em 13 de agosto de 2020, no julgado em que o Supremo analisa o pedido de Medida Cautelar da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 6529, efetuada pelo Rede Sustentabilidade e pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) a fim de suspender norma que condiciona a ato do presidente da República o fornecimento de dados e conhecimentos específicos relacionados com a defesa das instituições e dos interesses nacionais à Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Nesse julgado, a maioria dos ministros do STF entendeu o compartilhamento de informações feito pela Abin deve ocorrer apenas nos casos que envolva interesse público da medida, deve ser devidamente motivado, envio de dados podem ser obtidos somente com prévia autorização judicial, como quebra de sigilo e escutas telefônicas e imprescindível procedimento formalmente instaurado bem como existência de sistemas eletrônicos de segurança e registro de acesso.
O debate sobre o tema tem grande repercussão no meio estatal, bem como na doutrina e estudos acadêmicos. O Poder Legislativo discute a instituição de leis que envolvam acesso, tratamento, compartilhamento de dados de cidadãos voltados para a política pública, como a PL 2630/2020, anteprojeto de lei sobre proteção de dados pessoais para fins de investigação criminal. Atualmente, a Câmara dos Deputados está reunindo juristas renomados a fim de analisar o anteprojeto com a intenção de obter procedimentos legais que se adequem a Constituição Federal.
Portanto, é evidente a necessidade de regras claras de procedimento e métodos legais e jurídicos sobre tratamento de dados como coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição entre outros, que garantam todas as premissas legais e constitucionais, abrangidos pela norma constitucional do devido processo legal. Isso significa que é necessário o debate, a construção e a implementação de mecanismos que salvaguardem a privacidade, a proteção de dados e especialmente os direitos fundamentais do cidadão, preservando a sua dignidade como pessoa a fim de não esteja em situação de restrição a liberdade e direitos velados pela vigilância e controle total da pessoa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIONI Bruno; MARTINS, Pedro. Devido processo informacional: um salto teórico-dogmático necessário? Data Privacy Brasil, 2020. Disponível em: <https://dataprivacy.com.br/devido-processo-informacional-um-salto-teorico-dogmatico-necessario/>. Acesso em: 16 de ago. de 2020
BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil – volume único – 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
D’AGOSTINO, Rossane. STF decide que repasse de informações à Abin exige motivação e interesse público. G1, Brasília, 13 de ago. de 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/08/13/maioria-no-stf-diz-que-repasse-de-informacoes-a-abin-exige-motivacao-e-interesse-publico.ghtml>. Acesso em: 16 de ago. de 2018.
SZEKIR, Erington. STF limita compartilhamento de dados entre governo e Abin. Rádio Guaíba, Porto Alegre, 13 de ago. de 2020. Disponível em: <https://guaiba.com.br/2020/08/13/stf-limita-compartilhamento-de-dados-entre-governo-e-abin/>. Acesso em: 16 de ago. de 2018.
RASTREABILIDADE em serviços de mensagens prevista no projeto de fake news é criticada em seminário. Câmara dos Deputados, 08 de jul de 2020. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/noticias/674486-rastreabilidade-em-servicos-de-mensagens-prevista-no-projeto-de-fake-news-e-criticada-em-seminario/>. Acesso em: 16 de ago. de 2018.
PAUTA desta quinta-feira (13) traz ação contra norma que condiciona fornecimento de dados à Abin a ato presidencial. Supremo Tribunal Federal, 13 de ago de 2020. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=449470>. Acesso em: 16 de ago. de 2018.
Informativo 976. Supremo Tribunal Federal, 04 a 08 de maio de 2020. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento /informativo976.htm>. Acesso em: 16 de ago. de 2018
[1] BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil – volume único – 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 71
[2] BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil – volume único – 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 73
[3] BIONI Bruno; MARTIS, Pedro. Devido processo informacional: um salto teórico-dogmático necessário? Data Privacy Brasil, 2020. Disponível em: <https://dataprivacy.com.br/devido-processo-informacional-um-salto-teorico-dogmatico-necessario/>. Acesso em: 16 de ago. de 2020
[4] STF. Informativo 976. ADI 6389 MC-Ref/DF, rel. Min. Rosa Weber, julgamento em 6 e 7.5.2020
Rúbio Rogério Madureira de Souza
Advogado na área empresarial. Membro da Comissão de Inovação na Advocacia da OAB/SC. Consultor do Núcleo Multisetorial de Soluções Empresarias da ACIF. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba/PR. Especialista em Jurisdição Federal pela ESMAFESC. Pós-graduando em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale. Cursou Privacidade e Proteção de Dados – Teoria e Prática pela Data Privacy Brasil.